
Sempre me interroguei sobre a verdadeira razão da antiga disputa entre a Igreja e os Astrólogos, anterior mesmo à época das Luzes, quando houve a cisão entre razão e fé.
Até porque, no início, a Astrologia andava de braços dados com a Religião e a Astronomia. Saberes como a Medicina, a Física, a Filosofia e outros conjugavam das mesmas raízes.
Para tentar entender o que acontecera, tive acesso à dissertação de Mestrado em História e Filosofia de Gianriccardo Grassia Pastore, intitulado “Astrologia e Inquisição em Portugal nos séculos XVI e XVII”. 1
Nesse trabalho, surge a primeira surpresa: “a Igreja concentrou muito mais seus esforços no impedimento do avanço do protestantismo do que em qualquer tema científico”, inicia o autor.
E continua: “É nesse contexto que a polêmica anti-astrológica surgirá. Na conjuntura das Reformas Protestantes, da defesa do livre-arbítrio contra a predestinação, tão defendida pelos protestantes , que a Inquisição irá concentra-se contra um tipo de astrologia”.
Naquela época, as subdivisões da Astrologia que ficaram mais conhecidas foram:
a) A Astrologia Natural – que incluía a Astrologia Médica e conjugava a Meteorológica, consideradas parte integrante da ciência da época.
A Astrologia Médica era usada para diagnosticar e tratar problemas de saúde. A Astrologia Natural era usada para prever condições do tempo, baseadas na observação das configurações e interações celestes, visando a orientação das tarefas da agricultura, das atividades de pesca e outras.
b) A Astrologia Judiciária conjugava os demais ramos da Astrologia natal, mundana, horária e eletiva. Essas é que foram rotuladas como heresia por parte da igreja Católica.
O problema colocado era justamente esse: se é possível fazer previsões quanto ao futuro, de que forma seria o homem livre para tomar suas decisões?
Observação importante: esse mesmo questionamento é feito pela Psicanálise – Freud e Lacan – em relação à Astrologia.
Podemos constatar nesse movimento, que as proibições da Igreja concentraram-se muito mais na “arte divinatória”, pois, em sua interpretação abalaria a ortodoxia da Igreja – um conflito entre o que estava “escrito nas estrelas” e o futuro a ser “escrito pelo próprio homem”.
AINDA UM POUCO MAIS DE HISTÓRIA DA ASTROLOGIA
Até os séculos XVI e XVII, a Astrologia percebia o céu a partir de um olhar da Terra. O Sol e a Lua eram considerados planetas e as estrelas mantinham-se fixas.
O céu era traçado de forma circular em 12 setores iguais, com 30 graus cada um e se chamava zodíaco. O movimento circular representava a eternidade e perfeição. Astrologia e Astronomia concordavam com essa visão de mundo.
O autor dessa tese cita Ugo Baldino, que explicita que desde os seus primórdios o cristianismo sempre estabeleceu relações com artes divinatórias. Há passagens no Antigo e Novo Testamentos que provam isso. Entretanto, a situação começou a se tornar complexa nos períodos apologéticos (leitura de Paulo) e patrícios (Orígenes, Agostinho de Hipona, Justin Mártir e Tertuliano) devido às pressuposições de que essas técnicas – crenças sobre. realidade natural e suas ligações com entidades sobrenaturais ou forças – não foram imediatamente expurgadas pela nova religião. Em função disso, essas crenças foram imediatamente catalogadas como demoníacas.
Essa “teologização” das “crenças mágico-divinatórias” suscitou debates na construção de uma ortodoxia cristã. Assim, a Astrologia Judiciária que fazia previsões sobre a vida de alguém, sobre guerras e eventos políticos, esbarrava então num princípio central do catolicismo: o livre-arbítrio. A partir do momento que uma pessoa não pudesse mais se responsabilizar por seus atos perante Deus, a igreja Católica colocava-se contra essa posição.
Na Idade Moderna – iniciou-se no final da Idade Média (1453 a. C.), incluindo o Renascimento e a Era dos descobrimentos (Colombo e Vasco da Gama) – a prática da astrologia chegou a níveis nunca imaginados na Antiguidade.
Alguns médicos – Ficino e Paracelso entre outros – trataram a Astrologia como parte central da Medicina. Entretanto, seus opositores foram implacáveis com esse saber, tratando-o como fraude e erro.
Giovanni Pico della Mirandola, um pensador italiano (1463-1496), considerado um dos mais notáveis representantes do humanismo renascentista, destacou-se por sua defesa do livre-arbítrio contra a predestinação a qual o homem estaria sujeito com a Astrologia.
Uma observação interessante a respeito desse autor, Mirandola 2: é apresentado como um homem muito erudito, inclusive especialista em assuntos de Cabala (conhecimento que coaduna seus princípios com a astrologia), utilizando desse saber no sentido de apoiar a doutrina cristã.
Estudou filosofia em Ferrara, Pádua e Paris. Nessas universidades estudou magia e astrologia em suas buscas humanistas. O humanismo contribuiu para a busca intelectual da magia (e da astrologia) por meio da descoberta, tradução e estudo de textos antigos (a tradução de Ficino dos textos herméticos foi. iniciativa mais famosa dentre elas).
Em sua primeira tese mágica, Pico negou a eficácia da magia demoníaca, mas nas teses relacionadas à Cabala, ele disse que a magia natural não tinha eficácia alguma sem o estudo desta.
Em seu livro I, apresentou as ideias de pouquíssimos defensores da Astrologia, sendo que fez isso no intuito de impugnar sua credibilidade. Argumentou também que Platão e Aristóteles condenavam a Astrologia por meio de seu silêncio, sendo este, um truque retórico dele para não ter sua autoridade enfraquecida diante de seus contemporâneos, caso ele não conseguisse citar as maiores autoridades pagãs. Entretanto, o silêncio desses grandes mestres se devia ao fato que a Astrologia, como uma disciplina, ainda não havia chegado à Grécia quando eles escreveram suas obras.
Com a profissionalização da Medicina houve um aumentou do prestígio da Astrologia na vida cotidiana das elites da época. Consultar um astrólogo era corriqueiro nas cortes europeias da Idade Moderna. era também parte integrante dos curriculum das academias.
No período final do Renascimento – fim do século XVI – o filósofo e professor italiano Lorenzo Valla afirmou em uma de suas obras que “se Deus conhece as ações futuras, não as conhece por suas causas, o que seria incompatível com a liberdade de ação, mas por sua mera “factibilidade” (previsibilidade).
Assim, o conhecimento futuro não é dado diretamente, é apenas possível por dedução a partir do conhecimento de suas causas – uma questão lógica.
Ao encerrar essa parte, podemos dizer que em vários momentos aconteceram muitas previsões astrológicas falsas. Mas não foram essas ou sua heterodoxia que apagaram a ideia milenar da Astrologia, enquanto ciência, mas sim, a uma nova ideia de razão e de ciência que a conduziram para o campo da “irracionalidade” – fora do mundo acadêmico.
A eterna luta de poder que sempre guiou os seres humanos – nesse momento retratada pelo embate Igreja Católica X Igreja Protestante. Miklhail Bakhtin, filósofo e pensador russo que dedicou sua vida à definição de noções, conceitos e categorias de análise da linguagem com base nos discursos cotidianos, nos ensinou que toda fala, toda narrativa se baseia no desejo (inconsciente), no caso (ou em quase todos os casos), desejo de poder, desejo de completude.
1. Pastore, Gianriccardo Grassia, Astrologia e Inquisição em Portugal nos séculos XVI e XVII, Dissertação de Mestrado em História e Filosofia das Ciências, Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências, Seção Autônoma de História e Filosofia das Ciências, 2014.
2. Mirandola, Pico Della, Novos Ensaios, editado por M. V. Dougherty, São Paulo: Madras, 2011.