I – O espelho sofiânico de Jacob Boehme.[1]
A filosofia do trabalho de Jacob Boehme foi um filósofo e místico luterano alemão (1575 – 1624) que em seu trabalho nos diz que a tendência à manifestação é absolutamente geral. É por isso que o ser puro e absolutamente indeterminado e ilimitado deseja uma limitação para nela se revelar.
Com efeito, o ilimitado e o indeterminado se revelam e se manifestam no limitado e no determinado, seus contrários. Assim, os contrários se chamam, se opõe, se condicionam e se implicam. Não se identificam, mas em sua oposição revelam-se mutuamente. Um só pode esse exprimir e se manifestar no outro e pelo outro.
O indeterminado aspira a um limite, não para limitar-se, mas para revelar-se. Ele se opõe uma determinação e um limite para revelar-se e revelá-la ao mesmo tempo. Aí está o grande mistério do ser.
Essa primitiva ausência da razão (Ungrund), ao que é nada, nem mesmo fundamento ou razão de algo que seja, que poderíamos traduzir como abismo. Sua noção corresponde com bastante exatidão à noção do “Nada Divino” da mística alemã clássica.
Segundo Boehme, toda vontade possui uma tendência ou a desejar algo e, nessa ação ou nesse desejo, a vontade se reflete e se contempla. Faz para si mesma um espelho na qual se mira e como não pode encontrar outra coisa a não ser a si mesma, torna-se ela mesma objeto de seu próprio desejo.
Ora, o desejo não tem objeto e só pode desejar-se a si mesmo. Produz assim uma obscuridade, a qual não é produto da vontade (Marte), mas do desejo (Vênus). Tudo o que está antes do desejo é inacessível – antes do desejo há apenas a liberdade pura da vontade eterna.
Por outro lado, a vontade pura é “sem essência”, ela é eternidade, uma indeterminação, uma ausência de movimento. Mas já o absoluto é um infinito, sem começo nem fim, ele é como um espelho, ele é um tudo e, no entanto, como um nada, olha a si mesmo e encontra um nada. Ora, já que no absoluto não há fundo, esse espelho é como um olho que embora não seja ainda ser, mas tal é a origem do ser, uma visão.
A criação do mundo (e a produção) é um “Mysterium”. Mas, por outro lado, esse mistério é não só um fato acontecido outrora, mas também ele se cumpre e se renova todos os dias diante de nós e em nós.
A passagem do UM ao OUTRO, o fato de que o UM se divide e se desdobra, ao mesmo tempo que permanece UM, é evidentemente um “Mysterium”.
No pensamento de Boehme, o UM não pode se conhecer se não se desdobrar ou se não se dividir em si mesmo. O UM absoluto é capaz de ver e de olhar e é, assim, um espelho e um olho que quer olhar e que deseja ver.
No fundo, não vê nada e no entanto, ele se vê. Temos aqui a ideia de uma estrutura trinária com o UM, o olho e a visão. Assim, podemos imaginar que o UM (Deus) se conhece, mas ainda de uma forma imperfeita. Ele se conhece na sua unidade, mas não na medida que é triplo.
Para que Deus se conheça em sua multiplicidade é preciso que projete uma imagem de si mesmo num “espelho” que não seja mais ele mesmo, que seja de outra forma exterior a ele. A trindade exige imperiosamente um quarto termo.
Esse espelho existe como um quarto termo para que Deus se oponha, para nele poder se refletir e nele se ver e ter assim plena consciência de si mesmo e, posteriormente, poder se realizar.
Deus se concebe assim como um sujeito e se opõe a si mesmo, e em ideia, a ideia de algo que não seria ele, de algo que ele poderia se distinguir, que possuiria um ser particular. Há aqui em Boehme a ideia de que a função essencial da natureza divina é permitir a Deus encontrar-se e realizar-se enquanto vida (orgânica).
A vida realiza-se ela mesma – ela é causa-sui. Sua existência é uma vitória sobre o Nada, sobre a Morte. Portanto, a Natureza, na doutrina de Boehme, não é outra coisa senão a vida e os aspectos paradoxais e contraditórios dessa Natureza.
O desejo é uma aspiração do vazio. Um abismo sem fundo que todo ser traz em si. Ora, um desejo é, necessariamente, desejo de algo; o vazio aspira ao pleno que poderia preenchê-lo. Ele busca eternamente em ter para si um ser qualquer, mas não acha nada, visto que nada é ainda. É o ser que lhe falta e é por isso que ele o procura. A vida é mistério, mas é justamente um mistério que se realiza no se manifestar.
II – Lacan e a filosofia de Jacob Boehme. [2]
Dufour em seu livro levanta a hipótese de que Lacan no seu encontro com Kojève no Seminário sobre Hegel (1936), às vésperas da primeira comunicação sobre o “estádio do espelho” em Marienbad, no Congresso da IPA, teve contato com o pensamento do filósofo barroco, em especial com a “Filosofia de Jacob Boehme”.
O tema do espelho é central na obra de Boehme (1575-1624). O espelho está aliás duplamente em jogo na obra de Boehme. O ponto de partida de todo esse assunto com que o filósofo se defronta é evidentemente a deidade (divindade). Ela é pensada por ele como Ungrund que designa a ausência total de determinação, de causa, de fundamento, de razão e seríamos tentados a traduzi-lo por Abismo, se Boehme não continuasse a empregar ao mesmo tempo – e num sentido diferente – o termo Abgrund, abismo sem fundo. Esse termo, longe de designar a ausência pura e simples de todo fundamento e de toda determinação no Absoluto, não faz senão indicar a falta de fundamento da existência e de centro de realização nos seres.
O UNGRUND para Boehme é o Absoluto totalmente indeterminado. Essa noção corresponde ao Nada Divino da mística alemã clássica, tal como existia desde Mestre Eckhart.
O resultado é uma teoria do “espelho sofiânico”, onde saindo desse indizível UNGRUND que Deus se concebe como sujeito. Ele só pode com efeito se conhecer a si mesmo, opondo-se a Si-mesmo. Deus se exprime assim, no homem, criado à sua imagem, e isso num movimento jamais acabado, infinito de revelação a si-mesmo.
O meio desse engendramento onde se passa do UM, indizível e invisível, ao múltiplo visível do mundo não é outro senão o espelho, este olho da Sabedoria Divina, que contém todas as imagens de todos os seres individuais.
III – O Estádio do Espelho em Lacan. [3]
Lacan apresentou o esquema do estádio do espelho no congresso psicanalítico de Marienbad. Em sua produção escrita produziu um texto, “Os complexos familiares na formação do indivíduo” para a Encyclopédie Française em 1938, onde estudando a família a observou sobre seu condicionamento por fatores culturais, reconhecendo a subversão da ordem humana à fixidez instintiva, própria dos animais.
Essa condição humana deve-se a prematuração biológica da criança que seria fatal se não ficasse aos cuidados de um outro. Diante da expressiva insuficiência maturacional do ser humano ocorre uma substituição de funções pela regulação através da imago, de uma função social.
Ao se opor o complexo (imagético) ao instinto, não se nega todo e qualquer fundamento biológico. Ele permanece ligado a uma base material que lhe assegura o pertencimento a um grupo social que pode ser constatado na dependência vital do sujeito em relação ao grupo.
A elaboração teórica do EU leva em consideração os complexos como organizadores do desenvolvimento psíquico humano e de sua relação social com o outro. Para isso, utiliza-se do “complexo de intrusão” que situa a rivalidade entre irmãos que, em geral, ocorre entre as crianças em certa idade intervalar e que comporta certa adaptação de posturas e gestos.
Nesse estágio, Lacan conclui que a identificação específica das condutas sociais baseia-se num sentimento do outro. Essa identificação só ocorre na medida em que a imago do outro possa estar ligada à estrutura do próprio corpo por certa similitude objetiva.
É em meio a essas elaborações sobre o estágio de desenvolvimento da criança que Lacan concebe o estádio do espelho. Esse estádio irá corresponder ao declínio do desmame – por volta do fim dos 6 meses. O reconhecimento pela sua imagem no espelho é um fenômeno que revela as tendências que então constituem a realidade do sujeito – sua imagem especular e, em razão dessas afinidades, fornece um bom símbolo dessa realidade, de seu valor afetivo – tão ilusório quanto a imagem – e de sua estrutura, que é o reflexo da forma humana.
Esse novo momento da relação do bebê com sua própria imagem seria resultado do investimento libidinal que é apenas o resultado de tensões psíquicas provenientes de nossa prematuração. Esse investimento libidinal na imagem apresenta um ideal de unidade para o sujeito que, nesse momento, apresenta condições insuficientes para sua sobrevivência – falta de coordenação tanto das pulsões, quanto das funções orgânicas.
Como podemos perceber, o mundo narcísico dessa fase não se explica apenas pelo investimento libidinal no próprio corpo, mas também, à sua estrutura mental. A imagem do duplo – como no mito de Narciso – que lhe é central, fornece a ilusão da imagem. Ilusão, como podemos perceber, que não contém o outro.
O duplo que se constitui com a imagem especular – EU Ideal/signo de Peixes – vem dizer sobre a tendência externa própria à formação do EU. Lacan designa essa intromissão da imagem como uma intrusão narcísica, uma vez que antes da afirmação de uma identidade, é necessário que o EU aliene-se nessa imagem que o forma nesse momento original. O EU guardará dessa origem a estrutura ambígua do espetáculo.

A assunção jubilatória de sua imagem especular se manifestará, numa situação exemplar, na matriz simbólica em que o EU se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universo, sua função de sujeito.
Para Lacan, a assunção dessa imagem do sujeito deve ser tida como uma identificação, ou seja, aquela que implica em uma transformação do sujeito. Trata-se aqui de uma identificação à imagem e não uma imitação dela.
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até a forma de sua totalidade.
IV – Estádio do Espelho e a Astrologia.
Desde o início de seu trabalho, Jacques Lacan operou uma tendência psicanalítica em compreender socialização e individualismo a partir de processos de identificação. Segundo o filósofo Vladimir Safatle[4], identificar-se é “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelo e de polo de orientação para os modos de desejar, julgar e agir.
Isso pode nos levar a certo paradoxo, pois, se afirmarmos que a identificação é o motor das dinâmicas de socialização, isso pode significar que é o processo social que permite a construção da subjetividade.
Entretanto, internalizar um tipo ideal encarnado na figura de um outro, significa conformar-se, alienar-se a partir desse outro que serve de referência para o desenvolvimento do EU.
Para Freud, há algo anterior aos processos de socialização. Da mesma forma, a psicanalista Piera Aulagnier deu origem ao registro do Originário – algo que ainda não é um EU, mas que é um corpo libidinal polimorfo e inconsistente. Isso nos explica porque os processos de socialização tendem a se impor através da repressão do corpo libidinal e da culpabilização de toda exigência de satisfação irrestrita.
Ainda nesse primeiro registro, para a Astrologia, se coloca a relação da LUA com o Ascendente que nos conduz a um importante e necessário estado de alienação. Podemos observar que o planeta Marte (elemento fogo) – regente da casa 1 – estabelece uma quadratura – ângulo de 90 graus – com a LUA (elemento água) determinando com o passar do tempo relações de agressividade com esse(s) primeiro(s) outro(s) que nos auxiliam em nossa chegada.
No desenvolvimento de seus trabalhos, Lacan ressaltou a importância da imagem especular (refletida) para a formação do EU. Ele, depois de 1936, designou o campo ou registro do Imaginário para identificar a relação dual com a imagem do outro. Assim, temos que o EU é fundado numa relação especular.
Lacan mostra nesse primeiro momento que o estádio do espelho faz a passagem especular para o Imaginário e, em 1953, o definiu como o lugar do EU por excelência, com seus fenômenos de ilusão e engodo.
Desde Freud, sabe-se que o EU não existe desde o início, portanto, antes do estádio do espelho, a criança não teria uma imagem unificada de si mesma – o que Freud denominou de corpo auto erótico. Piera Aulagnier identificou esse início como registro do Originário e Lacan como fantasma do corpo esfacelado.
O “outro” funciona como espelho, pois ao ver realizado nele, o que ainda não pode realizar em si, a criança antecipa sua futura organização motora. O EU ganha consistência a partir da relação com o outro, pois é esse outro que serve de testemunha para que a criança se reconheça no “espelho”.
A visão da forma total de seu corpo lhe dá um domínio prematuro e imaginário em relação ao domínio real de suas funções motoras. Assim, o corpo esfacelado encontra sua unidade em sua própria imagem antecipada. A partir de então, ao ver-se no espelho, a criança assume que é uma figura separada do outro.
Se entendermos que a identificação imaginária põe em jogo a questão da semelhança e da aparência, podemos afirmar que tanto na fase especular, como posteriormente em suas relações intersubjetivas, o sujeito se constitui através de uma relação imaginária com o outro (tomando-o como modelo). Nesse sentido, só há interação no campo imaginário, no sentido de que falamos para um semelhante que supomos capaz de nos entender.
A imagem tem portanto um poder morfogênico (que interfere na formação de um corpo), já que o sentimento do próprio corpo vem de uma matriz que é a imagem de um outro que tem domínio e liberdade motora. Lacan nos diz que por isso o EU é constituído do exterior para o interior.

Lacan faz uma diferença entre o “EU – Je” que ele classifica como sujeito do desejo (inconsciente) e o “EU – Moi”, do ego, da consciência.
Em Astrologia, o EU é representado pelo planeta Júpiter, regente das casas nove e co-regente da doze. Na casa doze, o identificamos o EU – Moi (EU Ideal) e na casa nove, temos o EU – Je (Ideal do Eu). Lacan nos afirma que nada separa o EU de suas “formas ideais”, absorvidas no seio da vida social.
Freud descreve o Eu ideal como aquele que pressupõe perfeição, valoração como um alguém de natureza modelar. Essa instância é sempre moldada pela mãe (ou aquela pessoa que ocupa essa função) indicando um posicionamento semelhante ao da ninfa Liríope (mãe de Narciso) que via o seu filho como o mais lindo e perfeito do mundo.
É o ideal que lhe transcende. A alteridade se faz presente, reconhecendo algo que o supera. O corte entre o Eu Ideal e o Ideal do Eu é segundo Freud regulado pela angústia de castração, ou seja, o sujeito passaria a se regular também pelas trocas intersubjetivas.
Para Joel Birman, psicanalista, seria por esse deslocamento que o amor de si encontraria uma espécie de equilíbrio relativo com o amor do outro, já que no registro do Eu Ideal, o amor de si engoliria completamente o amor do outro (narcisismo).
Finalmente, para fazermos um “link” com o registro Simbólico (linguagem), a Psicanálise nos diz que toda fala tem um endereçamento: sua entonação, seu estilo (reivindicativo, passivo, questionador, mortificado, etc.), indicam como ela é direcionada à imagem de um certo outro que sempre trago comigo.
O trabalho analítico – e por que não considerar o astrológico? – consiste em levar o sujeito a apreender tais imagens que determinam sua relação com o mundo e a si mesmo. Não se trata apenas de rememorar, mas mostrar como tais imagens, às quais o sujeito se vinculou, eram a maneira desesperada de dar forma ao seu desejo fundamental, opaco e desprovido de objeto, uma maneira de se defender dessa determinação angustiante fundamental que faz com que todo vínculo à imagem (sociedade-mãe) seja frágil.
Subjetivação, nesse contexto, significa transformar a falta em modo de manifestação do sujeito, ou ainda, como reconhecer a si mesmo naquilo que não se conforma à imagem?
Lembremos ainda que os posicionamentos de Júpiter nas casas doze e nove configuram uma quadratura (ângulo de 90 graus), representando uma dificuldade que pode e deve ser vencida.
Na Astrologia representamos o registro Imaginário através das últimas quatro casas de nosso mapa astrológico, ou sejam, as casas nove, dez, onze e doze. Se recorrermos a Astrologia Antiga, temos nessas posições os seguintes planetas: Júpiter – Saturno – Saturno – Júpiter.

Podemos verificar a ideia de um “espelhamento”. Ao nascer, o bebê é confrontado com sua primeira (e necessária) identificação com sua mãe que lhe formula a formação do registro “Eu Ideal”, de formatação narcísica e identificado no mapa natal através da casa doze. Com seu desenvolvimento, a criança vai re-formatando (com o auxílio da função paterna) essa primeira identificação e “instalando-a” na sua casa nove, a do “Ideal do Eu” através de seu mapa natal.
O planeta Saturno que participa desse “espelhamento” representa nas casas dez e onze o registro do Supereu, em suas duas faces, o que será objeto de um próximo artigo.
Esse método de análise é aplicado por mim em Psicanálise com pacientes que ouvidos autorizaram o trabalho conjunto, Psicanálise e Astrologia.
Isso auxilia muito o analista no entendimento do processo do paciente, respeitando sempre o discurso desse como direção do tratamento.
[1] Transcrito do livro de Alexandre Koyré, “A filosofia de Jacob Boehme“, Paris: VRIN, 1929, 3a. Reedição (trechos p. 244 à 369).
[2] Dufour, Dany-Robert, “Lacan e o espelho sofiânico de Boehme“, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
[3] Transcrito e adaptado do texto “A originalidade e a origem do Estádio do Espelho em Lacan” de Diógenes Domingos Faustino e Jussara Falek em Estilos Clínicos, São Paulo, v. 19 n. 3, set/dez. 2014.
[4] Safatle. Vladimir, “Introdução à Jacques Lacan“, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.